Abri a porta do meu apartamento trazendo nos braços caixas, pastas, que recebi dos professores, com livros e textos para estudo da minha pesquisa. Naquela noite, em especial, voltava da universidade fadigada, de modo que a cabeça pouco agia, pois era fim de semestre de uma conturbada rotina acadêmica cheia de avaliações. Joguei as chaves do carro no chapeleiro antigo que ganhei de herança da minha avó, logo entrei. Minha gata, Lela, rosnava para mim diante da porta com o seu insaciável apetite, não há outro momento de carinho dela por mim, somente ao exigir sua refeição. A cadela, Amélie, esparramada no sofá nem levantou as sobrancelhas ao me ver, talvez entediada de roer os pés da mesa de jantar.
Lá fora, os sons são os mesmos de todas as noites – as crianças barulhentas brincando no pátio do prédio, a televisão em alto volume vindo do apartamento vizinho, cujo proprietário é um velho surdo chamado Senhor Elias e a briga constante do casal estressado vindo de outro apartamento. Fui para o meu quarto, o lugar da casa que posso ter um pouco de sossego, revirei as caixas com os livros esperando algo cair do céu ou tentando absorver o conteúdo como mágica. O telefone tocou, era uma amiga que falava com voz preocupante: – O prazo para entregar o conto termina amanhã, logo cedo, pela manhã! Fiquei desolada com a notícia e as pilhas de leitura, no entanto, ignorei-as e saí do meu quarto buscando certo animo, quem sabe se eu espairecer a mente trabalhará melhor?
Peguei as chaves do carro, ansiosa para livrar-me do mundo acadêmico por alguns minutos, desci as escadas saltitando degrau por degrau. Na garagem, deparei-me com o carro do Senhor Elias trancando o meu, o porteiro, sem demora, retirou-o. As chaves do carro do Senhor Elias está sempre na portaria, aquele coitado nunca faz nada direito, deve ser a idade que o impede. Entrei no carro, coloquei a chave na ignição, virei-a, engatei a ré, saí da garagem com certo cuidado para não arranhar as novas calotas metalizadas. Tinha mandado lustrar o carro na melhor loja especializada, eu precisava ver como o ele ficou reluzente sob a luz da lua.
Voltei à Universidade, estava vazia, já passava das dez, era ali, próximo ao Setor II, a maioria das pessoas que frequentam o local já haviam ido para suas casas, a parada do circular estava vazia. Era o lugar ideal, entre o CCHLA e o Setor, a rua estava escura. Restava esperar que aparecesse apenas um, não importava a cor, a raça, o sexo, o tamanho. Não fazia diferença.
Então, eu o vi, parecia ser macho, grande, altivo e imponente. Ele caminhava tranquilamente no canteiro central, enquanto eu aguardava a hora certa de atacá-lo. Logo, desceu para o asfalto, milimetrei os centímetros para pegá-lo de cheio, calculei os segundos de cada passada com o tempo do impacto, apaguei os faróis e arranquei. Ele só percebeu que o carro se aproximava quando ouviu o barulho do cantar dos pneus, mas já era tarde. Dizem que os gatos são espertos, conseguem fugir com destreza, mas não desta vez. Ouvi o grito estridente e o barulho dos ossinhos se quebrando. Freei rapidamente, olhei pelo retrovisor interno e o vi agonizar, lutar pela vida, debater-se. Senti que não poderia deixá-lo assim, ainda com vida, teria que completar o serviço para o meu bel prazer. Dei ré, passei por cima da cabeça macia, sentindo como algo explodisse suavemente. Passei a primeira e parti para meu lar. Carro potente, ótimo motor.
De longe, olhei novamente pelo retrovisor, ainda deu pra ver o corpo do gato, agora sim, ele estava paralisado no meio da pista com sangue e miolos ao seu redor. Começou a chover, não precisei me preocupar com marcas no carro, a chuva havia limpado os restos. Cheguei ao prédio, guardei meu carro, examinei cada parte para ver se estava tudo no seu lugar, orgulhosa pela façanha, pois poucos tinham a mesma habilidade no volante. Subi ao meu apartamento, Lela já havia dormido satisfeita com o seu jantar, Amélie continuava sem alertas no seu canto de sofá. Então, voltei a minha pesquisa e com a mente mais disposta, finalmente pude escrever o conto para a bendita avaliação de literatura.
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